A arquitetura de Marcos Boldarini vai além do atendimento a clientes que desejam imóveis bonitos e funcionais, voltando-se, principalmente, para comunidades carentes e seus espaços coletivos.
Seu
reconhecimento chegou ao ponto de um líder comunitário ter pedido que uma
intervenção na comunidade fosse projetada por você. Onde ocorreu isso?
Não
participei diretamente do episódio, mas sei que ocorreu no âmbito da Secretaria
Municipal de Habitação [Sehab]. Tomei conhecimento por intermédio de um
jornalista, que ouviu a história em uma conversa que teve com Elisabete França
[arquiteta e superintendente de Habitação Popular da Sehab], ela relatando um
diálogo que tivera com esse líder. Também tenho bastante curiosidade e gostaria
de saber quem é. Pode ser que tenha acontecido na área da margem oposta [da
represa Billings] à do Cantinho do Céu. Estamos trabalhando num bairro chamado
[Jardim] Pabreu e já tínhamos escutado de alguns moradores que seria muito
interessante a comunidade ter o mesmo tratamento, com o padrão e os
diferenciais que foram aplicados naquele projeto de urbanização. Fomos
convidados a participar do desenvolvimento do projeto do Pabreu em função de
uma possível continuidade com o Cantinho do Céu.
...
.
Você
foi cursar arquitetura na FAU/Brás Cubas também em razão do grupo de
professores que lá davam aulas. Por que esse interesse?
Sempre
me fascinou a questão da cidade, a questão dos fluxos e das diversidades dos
usos, e foi esse interesse pela cidade que, de fato, me aproximou da
arquitetura. Quando decidi ingressar na faculdade fui para a Universidade Brás
Cubas por causa do grupo que estava lá naquele momento, num curso que era
coordenado por Ciro Pirondi. E foi gratificante: para mim, um dos aspectos mais
interessantes da universidade era a proximidade dos alunos com os professores,
a qual considero tenha sido muito salutar. Ao terminar o curso, a sequência
natural era montar um escritório. Um ano depois de formado fiz isso, mesmo sem
ter projeto. Éramos três sócios: Ronaldo Pezzo, Eulalia Portela e eu. Era um
pouco romântico. Não tínhamos trabalho, mas como cada um tinha uma atividade
complementar, íamos nos bancando. Mas foram três anos trabalhando de portas
fechadas.
Apesar
de você ter apontado o nome de arquitetos na sua época de faculdade,
aparentemente a arquitetura habitacional de baixa renda produziu pouca coisa
expressiva. Você concorda com essa análise? Em que momento isso mudou?
Não
sou, efetivamente, um estudioso da habitação e, por isso mesmo, teria um pouco
mais de cuidado para afirmar se a produção desse período foi ou não pouco
expressiva. O que acredito é que, nesse momento, temos o início de uma
construção de reflexões e de conceitos e de uma aceitação por parte da
sociedade da importância e do reconhecimento do tema. Começamos com
urbanizações menores, não tão expressivas, mas já com questões conceituais
interessantes e com diversidade na produção de habitação ou urbanização. Hoje,
o país vive um momento econômico completamente diferente, com o reconhecimento
da importância de políticas que atendam a essas questões e deem conta de suprir
os déficits que a cidade apresenta. Estamos vindo num crescente, talvez
interrompido por um momento na gestão de Paulo Maluf com os Cingapuras. Mas
nessa mesma gestão o Programa Guarapiranga vinha se desenvolvendo. Por isso
acredito que estamos num crescente, numa soma de propostas, conseguindo pactuar
e consolidar experiências com questões mínimas a serem atendidas. Quando você
chega a uma fase em que uma comunidade exige o nome de um arquiteto ou uma
maneira de atuar, isso me parece a expressão da consolidação de um momento, de
uma prática, de um fazer, e que não se aceita por menos que aquilo.
Você
citou São Paulo e algumas cidades da região metropolitana onde estariam sendo
desenvolvidas experiências urbanístico-arquitetônicas interessantes. No âmbito
do estado, a CDHU parece não ter incorporado o valor da arquitetura. A cunha
cravada pela Sehab pode ter alguma repercussão na atuação estadual e no governo
federal, no programa Minha Casa, Minha Vida?
Em
reportagem publicada recentemente [esta entrevista foi realizada no início de
janeiro], o governador [Geraldo Alckmin] expressou o desejo de mudança com
relação ao perfil de atuação da CDHU. A companhia não seria mais um promotor,
mas um financiador. Não tenho acompanhado isso de perto, mas considero que no
âmbito estadual, e até mesmo no federal, não temos uma produção com a qualidade
da dos municípios. Tivemos um momento interessante com o concurso para as novas
tipologias da CDHU, mas não sei como isso caminhou, pois não participei.
Pareceu‑me que era uma oportunidade de reflexão, de mudança. De qualquer forma,
não me agrada a utilização de soluções prontas para os lugares. A possibilidade
de trabalhar numa aproximação, reconhecimento e análise mais próxima, caso a
caso, me parece ser um caminho desejável por todos os arquitetos. Compreendendo
sempre a questão de que a atuação deveria ser uma reflexão sobre como construir
ou reconstruir a cidade de fato - algo que não observamos em alguns projetos do
Minha Casa, Minha Vida -, na diversidade dos usos, na questão das continuidades
urbanas, das conexões, das inter-relações, enfim.
Por
que a arquitetura desenvolvida pelo seu e por alguns outros escritórios começa
a chamar a atenção fora da mídia especializada?
A
prefeitura [de São Paulo] tem estimulado o desenvolvimento de projetos que
tenham na arquitetura um elemento importante a ser prestigiado. Projetos mais
recentes - de escritórios como o de Mario Biselli, Andrade Morettin, Una, MMBB,
Marcelo Suzuki e os que desenvolvemos - têm procurado soluções que valorizam o
espaço público, coletivo, e trazem um desenho que estabelece, de fato, uma
relação com a cidade, sendo específicos para cada local. É preciso trazer
respostas adequadas para as questões que estão sendo apresentadas. Somada à
qualidade desses arquitetos - que fariam bons trabalhos em qualquer caso -,
essa situação mostra que bons projetos produzem boas obras. E que boas obras
podem ser realizadas com poucos recursos. Quanto aos elementos que temos
buscado, talvez se trate de um resgate de questões já resolvidas na arquitetura
brasileira: as circulações externas, como varandas, a reutilização de parte da
cobertura como espaço coletivo, o destaque dado ao espaço comum, a diversidade
de usos. Além da valorização das condições dos terrenos e suas interfaces e
articulações, por exemplo, nas áreas dentro de favelas. Vivemos um momento
especial nos últimos anos com o convite a esses escritórios, com a liberdade
para apresentar propostas novas, dentro, é óbvio, dos limites que a política
habitacional coloca.
Você
tem visto soluções interessantes em outros estados?
Nesse
momento, acredito que São Paulo esteja à frente em qualidade. É um reflexo das
oportunidades que temos tido, e verificamos isso em palestras com pessoas do
Rio de Janeiro, do Sul do país ou mesmo do Norte. Em qualidade e quantidade,
acredito que São Paulo tem dado contribuições importantes, não só sob o ponto
de vista da produção habitacional, mas também do desenho de espaços públicos,
da infraestrutura. Espero que consigamos consolidar esse momento como o de um
padrão mínimo e avançar a partir do que está sendo produzido agora. Sempre há -
e deve haver - espaço para críticas, para reflexões e para mudanças, até para
que não se crie uma abordagem única sobre o tema. Espero que se consiga avançar
com a continuidade de políticas que compreendam e analisem aquilo que há de
qualidade no trabalho desenvolvido até agora, mesmo que com bandeiras
partidárias diferentes. Alguns elementos da gestão de Marta Suplicy foram
incorporados na de [José] Serra, e ficaram para [Gilberto] a de Kassab. Espero
que, independentemente de quem ganhe as eleições, as boas práticas continuem.
Como
você avalia a produção dos conjuntos habitacionais como os Cingapuras? Há
alguma solução para esses modelos?
Teremos
que conviver ainda por um tempo com essa situação. Não chegaremos tão breve à
possibilidade de demolir os conjuntos, como alguns países europeus têm feito,
mas devemos tentar evitar a reprodução do modelo, que ainda vem ocorrendo em
algumas situações, em algumas obras no governo do estado de São Paulo, em
outras cidades. Em outros estados e em algumas experiências do Minha Casa,
Minha Vida existe ainda um pouco dessa solução no atacado.
No
caso dos programas habitacionais, o cliente é quase sempre o Estado, mas o
usuário é o morador. Como é a relação do seu escritório com esse ocupante?
Nesse
momento, estamos fazendo uma reflexão sobre como deve ser a metodologia para
essa abordagem. Nós nos consideramos um ponto no meio de uma linha e o que
fazemos é nos aproximar de outros pontos para a compreensão daquilo que é
importante. Temos procurado desenvolver uma maneira de nos aproximar das
comunidades para estabelecer uma troca de informações, não só sob o ponto de
vista do que servirá de subsídio para o projeto, como também para transmitir
aos interessados qual é o processo, quais suas etapas e como ele ocorre. Em
algumas áreas estamos procurando construir o canal de diálogo a partir de
locais específicos dentro da comunidade. É o caso dos projetos de urbanização
do Pabreu, em São Paulo, e do Areião, em São Bernardo do Campo. Essa prática não
é inovadora e há escritórios que trabalham com metodologias participativas, mas
estamos achando um meio do caminho para aquilo que possa ser interessante e que
dê o resultado e o retorno que esperamos como subsídio para o projeto.
Como
é o desenvolvimento de um projeto de urbanização em comunidades carentes?
Procura-se antes fazer um diagnóstico dos problemas?
Prefiro
usar o termo leitura técnica ou leitura socioespacial. O arquiteto urbanista
precisa fazer uma leitura do local. Há lugares que apresentam questões
específicas - o Cantinho do Céu é um deles. Ali a paisagem natural possui uma
beleza ímpar. Numa primeira aproximação com moradores e lideranças
comunitárias, percebemos, porém, que a comunidade não reconhecia o local, do
ponto de vista da paisagem, como algo tão expressivo quanto era para nós, que
chegávamos ali como visitantes. Então, além de todos os pré-requisitos
colocados pela prefeitura, o projeto tinha o desejo de promover a integração
tendo aquela paisagem como protagonista. A oportunidade de trabalhar um espaço
público que articula e aproxima a comunidade do reservatório era uma questão
específica para aquele projeto, completamente diferente de abordagens que
concebemos em outras situações. No Cantinho do Céu, o projeto se desenvolveu a
partir de estudo básico elaborado pela prefeitura, que propunha a consolidação
do assentamento, sob parâmetros e critérios que estavam estabelecidos na
política pública. Fomos convidados a atuar no processo de urbanização que
estava licitado e verificamos a possibilidade de algumas mudanças que nos
pareciam importantes para qualificar o espaço. A presença do parque é muito
forte, mas na verdade é um projeto de urbanização do qual o parque é um
elemento.
A
formação nas escolas estimula o profissional a atuar no segmento de urbanização
e habitação social?
Hoje
em dia, sim. Tenho notado uma grande quantidade de trabalhos de graduação que
têm a urbanização e a habitação social como temas. Há algumas escolas
trabalhando esse tema na pós-graduação. A Escola da Cidade, por exemplo, deve
estar indo para a terceira ou quarta turma de um curso de habitação em cidade,
com o qual colaboro, orientando o ateliê. Recentemente fui convidado pelo Senac
para participar de um simpósio para debater as questões das áreas de risco e,
no meu caso específico, sob o viés da intervenção em locais mais críticos. Esse
é um tema da pauta, tanto da mídia como das escolas e das pesquisas de
arquitetura, e é importante que consigamos dar respostas para o problema. Em
São Paulo há hoje 1.600 favelas, quase mil loteamentos irregulares, um
contingente de cerca de 3 milhões de habitantes morando com algum tipo de
irregularidade, seja ela jurídica ou uma condição de precariedade física, com
problemas urbanos.
O
arquiteto Haroldo Pinheiro, presidente do CAU/BR, disse que o conselho pretende
que o arquiteto volte a se envolver com a obra. Há espaço para isso no
urbanismo e na habitação de baixa renda?
Há,
e é necessário recuperar o espaço que os arquitetos perderam no canteiro de
obras, até para que verifiquem se as soluções desenhadas por eles devem ser
aperfeiçoadas. Não vejo um processo de urbanização de favelas ou de construção
de um conjunto habitacional sem a participação cotidiana do arquiteto. Há uma
série de decisões que os arquitetos têm que tomar no tocante ao espaço. Acho
mesmo que nesses projetos nossa participação é ainda mais necessária que em
outros nos quais há um detalhamento mais específico. Em alguns casos, num
processo de urbanização, só é possível avançar com a presença efetiva e cotidiana
do arquiteto, porque em algumas situações os projetos são quase desenhos de
referência. A maneira de capturar a informação é estar ali. É um fazer e
refazer constantes. Em nossos projetos temos feito esse acompanhamento. Isso
ocorreu no caso do Cantinho do Céu e mesmo numa experiência na favela de
Paraisópolis [comunidade localizada na zona sul da capital paulista], num
edifício pequeno de uso múltiplo, inserido dentro de uma área de urbanização. À
medida que o trabalho vai avançando, as adequações são necessárias e, por isso,
acredito ser inevitável o retorno do arquiteto ao canteiro de obras.
(Fonte:
Revista Arcoweb)
Este endereço vai ser mudado para www.mariliafleury.blogspot.com