sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Carlos Motta e o design da vida

Inteligência, humanização, respeito à natureza, harmonia, criatividade. Isto é Carlos Motta. Interessantíssimo como arquiteto, pessoa, pensador, criador... 

“Eu continuo realizando um exercício sobre como habitar bem um lugar”, diz Carlos Motta, cuja arquitetura é uma extensão de sua obra como designer. Personagem único da cena arquitetônica nacional, ele é uma espécie de discípulo do escritor e crítico John Ruskin (1819-1900) que, ao longo do tempo, não perdeu a essência da contracultura. Para Motta, status e poder “levam a uma arquitetura tristíssima”.
Apesar de seu principal foco ser o desenho de móveis, o senhor tem uma produção arquitetônica que é uma extensão da produção de mobiliário. É isso mesmo?
Para mim as coisas são muito misturadas. Meu ateliê tem uma porta aberta para a rua, que acaba simbolizando que em minha vida não existe ruptura entre o trabalho, a família, o ócio, o prazer, o surfe, a contracultura etc. Minha arquitetura e meu design estão combinados de forma holística - para usar uma palavra que está um pouco desgastada.

Desde os primeiros projetos que fiz, quando estava no último ano da faculdade e antes de ir morar na Califórnia - uma fazenda na divisa do Brasil com o Paraguai, um lugar com topografia lindíssima, e um projeto em Ponta Porã, MS, que foi minha primeira proposta executada -, já aparecem claramente os meus conceitos, que se repetem ao longo de 35 anos.
Que conceitos são esses?
Algo que sempre me afligiu - principalmente nas áreas urbanas - é entrar na casa e o espaço acabar. Isso porque atrás tem um quarto, depois um banheiro e coisas assim. Eu sempre tive a vontade de entrar e ver o outro lado, de enxergar o fundo do lote, por exemplo. Eu quero que meu olho atravesse essa perspectiva por dentro da casa nos dois sentidos, longitudinal e transversal. Há isso em todos os meus projetos. É algo intuitivo, não é intelectualizado.


Outra coisa: eu não gosto de mexer na topografia. Faço tudo para não modificar um terreno que está geologicamente consolidado há bilhões de anos. A única coisa que faço é pegar uma enxada e, de leve, assentar a “bunda” da casa no lote. Tento me amoldar à situação porque, do contrário, vou criar um impacto negativo.

O ser humano é inteligente e transformador: em um minuto convertemos um pedaço de madeira em uma fruteira, uma árvore em uma canoa e até silício em computador. Nossa capacidade de transformação é, ao mesmo tempo, incrível e perigosa. Dois homens com dois D10 - que são aqueles tratores grandes - tiram um morro do lugar em menos de um dia. E, com o morro, vão embora a vegetação, insetos, nascentes e tudo o mais. Não se trata de uma posição xiita, romântica ou ecochata: é a descrição da realidade.

Pensar assim me entusiasma: vamos habitar um lugar causando o mínimo dano possível e oferecer a melhor qualidade de vida. Nós todos precisamos de conforto, segurança, silêncio, calor e ventilação. Com inteligência, dá para chegar muito perto disso e, quando não é possível, podemos usar o ar-condicionado, ventilações, isolamentos térmico e acústico. Então, para mim, a arquitetura sempre esteve muito perto de chegar na coisa mais pura.
 
Falando assim, o senhor não tem medo de ser rotulado de piegas ou romântico?
Não é isso: é intuição. Nos anos 1970, eu comprei um livro chamado Animal architecture, escrito por um alemão [o etologista Karl von Frisch, prêmio Nobel de medicina em 1973]. Ele mostra as pequenas casas, as habitações, os ninhos e cantos que cada bicho constrói para dar continuidade a sua raça. É das coisas mais geniais que eu já vi. É harmônico, respeitoso - dentro de uma cadeia alimentar cruel: um está comendo o outro, o animal faz um ninho bem bonito e depois leva um pedaço de perna de coelho para o filhote comer.

Falando exclusivamente da habitação, é muito bonito. E quando chega a hora de o homem criar seu espaço entram o status e o poder, e algo que poderia ser harmônico se deteriora. O resultado é muito feio e leva, por exemplo, à arquitetura produzida em São Paulo, que é tristíssima.

Como o senhor consegue conviver com a cidade?
Eu me sinto muito incomodado com a forma como ocupamos a cidade. Todo mundo vive mal: os ricos trancafiados atrás de seus muros e os pobres nas favelas. Isso resultou em uma arquitetura cruel, feia, antiestética, burra. Como eu sou um arquitetinho muito pequenininho nas coisas que venho fazendo, continuo realizando um exercício sobre como habitar bem um lugar.
 

Todos temos as mesmas exigências básicas dentro do habitar: todos fazemos necessidades, nos reproduzimos, dormimos, comemos, sofremos. Não importa onde, se na Mantiqueira, no Vietnã ou em Nova York. Tanto faz: o ser humano é totalmente idêntico no sentido de sua origem animal. Se eu beliscar você, você grita; se eu for agressivo com você, você revida. E o bacana é que, apesar de todo esse instinto animal, nós ainda tiramos proveito da estética, do belo.


A arquitetura e o design podem ser belos. Mas ignoraram isso tudo e partiram para o mercantilismo, para o que vende. Cria-se uma arquitetura boçalizada, completamente distante do que possa ser honesto, feliz, harmônico ou, mais do que tudo, generoso.
E se o chamassem para fazer um prédio em São Paulo? O senhor aceitaria?
Acho que eu aceitaria, mas não sei se eu estou capacitado para isso. Não discordo da verticalização. Não tenho dúvida de que o ser humano gosta de viver apinhado, não é à toa que essa cidade não para de crescer. E não é só uma questão de oportunidades.

Eu, por exemplo, moro em São Paulo e sou surfista com tendências naturebas extremas. Já morei na Califórnia, e voltei; fui para o litoral de São Paulo, e voltei; fiquei durante vários períodos na Europa, rodei o mundo para surfar, fui para os lugares mais ermos, isolados e lindos, puros. Mas, de repente, me pegava pensando: “Que saudades de São Paulo!”. Quando eu voltava, passava pela marginal e observava aqueles cachorros atropelados e estufados na beira da via, os motoboys a todo vapor, e concluía: “Cheguei”. Gostamos de nos agrupar e verticalizar é muitas vezes uma solução. Mas o jeito como isso está sendo feito é equivocado e cruel.
(Trechos da entrevista de Carlos Motta na revista Projeto Design, transcrita pela revista Arcoweb. Aos interessados, Carlos Motta lançou, pela editora Bei, o livro Carlos Motta e a vida.)

P.S. O endereço deste blog vai ser mudado, em breve, para www.mariliafleury.blogspot.com

3 comentários:

  1. Obrigada pelo Carlos Motta que eu não conhecia. Adorei. Vou ficar de olho nele, daqui por diante. Sílvia de Souza

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